quinta-feira, 23 de outubro de 2008

A competência da Justiça Militar brasileira e o abuso de autoridade praticado por militar

Texto extraído do Jus Navigandi
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11859

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Julio Cesar da Silva Nunes
Advogado, pós-graduado em Direito Público pela UNISAL.
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1 INTRÓITO

Já se tornou comum na mídia a divulgação de casos que envolvem a prática de violência policial contra civis. O Capítulo III da Constituição Republicana, o único dedicado exclusivamente à segurança pública determina, dentre outros imperativos, a preservação da incolumidade das pessoas. Logo, as condutas praticadas por policiais militares que se desvirtuam de suas funções constitucionais precípuas, quais sejam "a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio" (art. 144, "caput", da Constituição Republicana) são incompatíveis com a Nova Ordem Constitucional brasileira. Embora seja comum a ocorrência de tais condutas delitivas, essas devem ser execradas do nosso cotidiano e punidas severamente por nossa justiça.

Nesse contexto, pode-se indagar: o militar (federal ou estadual) servidor público especial, objeto de análise do deste estudo, pratica crime comum ou militar contra civis? Ocorrido o crime de abuso de autoridade praticado por militar (ou policial militar) é da competência da justiça comum ou da castrense o seu julgamento?

O presente trabalho procura responder, ainda que sucintamente, a tais questionamentos, com enfoque voltado à competência da Justiça Militar brasileira. A denominação Militar, que faz parte da nomenclatura do presente artigo, é gênero, possuindo como espécies o policial militar estadual e/ou bombeiro (Forças Auxiliares) e o militar integrante de qualquer das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica).

Cabe ressaltar que o estudo não tem a finalidade de esgotar a matéria em relação à natureza do crime militar, no entanto faz uma menção superficial do assunto, devido à grande divergência doutrinária que deflagra da matéria. O tema "crime militar" em sua profundidade será explanado em trabalho ainda em desenvolvimento. Logo, pretende destacar qual entendimento está sedimentado em nos tribunais superiores referente à matéria em análise, qual seja a competência da Justiça Militar brasileira.


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2 DO CRIME DE ABUSO DE AUTORIDADE: A FUNDAMENTAÇÃO LEGAL

O crime de abuso de autoridade, regido pela lei n. 4.898/65, possui rito próprio e caracteriza-se pelo excesso praticado pela autoridade no exercício da função concedida ao servidor público, cuja a responsabilidade administrativa, civil e penal é regulamentada pela lei em comento. A representação do ofendido não é condição de procedibilidade da ação penal pública, ou seja, "a exigência de representação para legitimar a atuação do Ministério Público na promoção da ação penal pelo crime de abuso de autoridade foi abolida pela Lei n. 5.249/67, que revogou o art. 12 da Lei 4.898/65" (TJSP – RT, 375/363).

Consiste o abuso de autoridade propriamente dito, conforme o disposto no art. 3º da sua lei, constituindo hipóteses de crime unissubsistente qualquer atentado, in verbis:

(...) "a) à liberdade de locomoção; b) à inviolabilidade do domicílio;c) ao sigilo da correspondência; d) à liberdade de consciência e de crença; e) ao livre exercício do culto religioso; f) à liberdade de associação; g) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício do voto; h) ao direito de reunião; i) à incolumidade física do indivíduo; j) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional" (Incluído pela Lei nº 6.657,de 05/06/79).

Tratando-se de crimes plurissubsistentes, conforme classificação doutrinária, tem-se as seguintes hipóteses no art. 4º:

(...) "a) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder; b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei; c) deixar de comunicar, imediatamente, ao juiz competente a prisão ou detenção de qualquer pessoa; d) deixar o Juiz de ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe seja comunicada; e) levar à prisão e nela deter quem quer que se proponha a prestar fiança, permitida em lei; f) cobrar o carcereiro ou agente de autoridade policial carceragem, custas, emolumentos ou qualquer outra despesa, desde que a cobrança não tenha apoio em lei, quer quanto à espécie quer quanto ao seu valor; g) recusar o carcereiro ou agente de autoridade policial recibo de importância recebida a título de carceragem, custas, emolumentos ou de qualquer outra despesas; h) o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal; i) prolongar a execução de prisão temporária, de pena ou de medida de segurança, deixando de expedir em tempo oportuno ou de cumprir imediatamente ordem de liberdade" (Incluído pela Lei nº 7.960, de 21/12/89).

Nesse contexto, classifica-se doutrinariamente como sendo crime próprio, ou seja, somente pode ser praticado pelo servidor público da ativa, porém admite a figura do concurso de pessoas (art. 29 et seq., Código Penal; e art. 53 et seq., Código Penal Militar). Pode haver também o concurso material de crimes, ou seja, a das penas do abuso de autoridade e, por exemplo, uma lesão corporal (art. 129, Código Penal).

O servidor público na inatividade, por questões óbvias, não comete o crime em estudo, pois não está mais investido na função pública logo, não é mais uma autoridade. No que tange ao elemento subjetivo do tipo, só é punido a título de dolo, mas exige a presença de um especial fim de agir, conhecido também como dolo específico, ou seja, lançar mão de excessiva e arbitrária autoridade. Nos casos de seu art. 3º, a lei em comento não admite tentativa, porém nos casos descritos em seu art. 4º, tal assertiva é punível, desde que constitua crime plurissubsistente, isto é, praticado por mais de um ato.

Os bens juridicamente tutelados pela inteligência da lei podem ser entendidos de duas formas: a administração pública e a vítima, constituindo o que a classificação de crimes do direito penal chama de dupla subjetividade passiva.

Para determinar quem é autoridade, a letra da lei não permite interpretações vãs. Nos termos do art. 5º da lei n.º 4898/65 observa-se ipsis litteris que o art. 5º considera autoridade, para os efeitos da lei, "quem exerce cargo, emprego ou função pública, de natureza civil, ou militar, ainda que transitoriamente e sem remuneração" (n° da página, grifo nosso).

Considera-se autoridade o policial militar da ativa o indivíduo que, num momento de privação da razão, contrariando os preceitos constitucionais às suas funções precípuas, pratica conduta arbitrária dirigida tanto ao civil, quanto a outro militar (ou funcionário público), agindo fora dos limites impostos pela Lei lato sensu (CR/88), bem como pela lei stricto sensu (lei n.º 4998/65).

A dimensão da punição do delito em estudo é tratada expressamente no art. 6º da lei de abuso de autoridade, são elas: administrativa, civil e penalmente.

A punição civil consiste na reparação do dano (arts. 186 c.c art. 927, do Código Civil); a sanção penal consiste em detenção, multa e perda do cargo e inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública pelo prazo de até 3 anos; a reprimenda administrativa, por sua vez, descritas no § 1º do mesmo artigo, consiste em: advertência, repreensão, suspensão do cargo até 180 dias, destituição de função; demissão e, por fim, demissão a bem do serviço público.


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3 DA JUSTIÇA COMUM E DA JUSTIÇA MILITAR BRASILEIRA

3.1 Da Justiça Comum Estadual e Federal

A justiça comum, estadual ou federal, não é competente para processar e julgar os crimes militares assim definidos pela legislação castrense. Ela possui competência residual perante às "outras justiças". Em regra, segundo o prof. Capez (2004), "à justiça comum estadual compete tudo o que não for de competência das jurisdições especiais e federal (competência residual)".

Excepcionalmente, os estados-membros, cujo efetivo das forças auxiliares não alcancem o número de vinte mil integrantes (§ 3º, in fine, art. 125, da CR), julgarão os crimes militares por seus juízes de direito ou tribunais de justiça e, em caso de vítima civil nos crimes dolosos contra a vida e seus conexos, caberá ao tribunal do júri julgar os militares.

3.2 Justiça Militar brasileira: duzentos anos de história

Comemorou-se, no dia 1º de abril de 2008, 200 anos da instalação da Justiça Militar no Brasil. A Justiça Militar brasileira sempre possuiu como uma de suas principais características a severidade de suas penas, tanto é verdade que constantemente é alvo de acusações de afronta à Nova Ordem Constitucional de 1988 (CR/88), possuindo alguns dispositivos de sua legislação declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal.

Todo o rigorismo da justiça penal castrense (pelo menos sua influência) se atribui, ainda que indiretamente, a um alemão militar reformado do exército britânico, Wilhelm Lippe, também conhecido como o Conde de Schaumbourg, encarregado de reestruturar o exército português a convite do Rei de Portugal D. José I. À guisa de exemplificação, o militar que demonstrara fraqueza era punido com a morte, e todo militar que, estando em batalha, partisse em fuga por medo do inimigo, poderia ser morto sumariamente pela espada de qualquer Oficial, sem qualquer chance de defesa. Segundo informa a obra de Carvalho (2007), "A Tutela Jurídica da Hierarquia e da Disciplina Militar", o Regulamento do Conde de Lippe vigorou no Exército brasileiro até 1907, quando o então Ministro da Guerra Marechal Hermes Rodrigues da Fonseca fez uma reforma na sua força militar terrestre (págs. 60-61). Nota-se, claramente que tamanha severidade aplicada naquela época refletiu, de certa forma, na elaboração da legislação militar brasileira, tendo sempre como pano de fundo os basilares princípios constitucionais de hierarquia e disciplina.

Entretanto, a família real portuguesa, no ano de 1808, em rota de fuga do imperador francês Napoleão Bonaparte, trouxe para o Brasil não apenas suas riquezas e costumes na sua bagagem, mas também a sua justiça. Corroborando o alegado pode-se ressaltar ensinamentos do eminente magistrado da Justiça Militar Federal, Barroso Filho (1999), que em momento oportuno, pronuncia de forma significativa que

"(...) a justiça militar brasileira, como não podia deixar de ser, originou-se da Justiça Militar Portuguesa. Quando o príncipe regente D. João chegou ao Brasil fundou o 1º Tribunal Superior do País, o Conselho Supremo Militar e de Justiça, em 1º de abril de 1808. Esse Tribunal foi o embrião do atual Superior Tribunal Militar. Sobre a atuação da Corte, nestes anos, invoco a apreciação dos advogados - os mais autorizados e severos julgadores - notáveis foram os pronunciamentos de Sobral Pinto, Serrano Neves, Téci Lins e Silva, Heleno Fragoso, dentre outros, sempre destacando o caráter liberal e justo do STM".

A Justiça Militar, seja no âmbito estadual ou federal, também é conhecida como Justiça Castrense. A palavra "castrense", segundo o dicionarista Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, é um adjetivo que se refere à casa militar ou acampamento militar. Derivada do latim castrorum, remissivo ao período romano, onde falhas no campo de batalha e coisas do cotidiano militar eram sumariamente julgados por aquele que tinha o poder de impérium, por essa razão é conhecida como Justiça Castrense.

De fato, falar em competência é falar inevitavelmente em jurisdição que, para o promotor Capez (2004)

"é a função estatal exercida pelo poder judiciário, consistente na aplicação de normas da ordem jurídica a um caso concreto, com a conseqüente solução do litígio. É o poder de julgar um caso concreto, de acordo com o ordenamento jurídico, por meio do processo" (186).

No magistério do eminente promotor de justiça, Dr. José da Silva Loureiro Neto (2003) ressalta que "entre as diversas classificações de jurisdição, destacamos as consideradas ordinárias ou comum e especial ou extraordinária" (104). Trata-se da jurisdição esse ato de dizer o direito aplicando-o a casos concretos, em consonância com a vontade da lei, objetivando manter regras de convivência em sociedade.

Não objetiva-se desenvolver um trabalho monográfico, sequer uma dissertação, muitos menos esgotar o estudo da matéria, o estudo do presente ensaio focaliza maior atenção às regras aplicadas aos crimes militares em tempo de paz. Antes disso, à guisa de esclarecimento, cabe dizer que em nosso ordenamento jurídico, os militares ou integram as forças armadas (Marinha, Exército ou Aeronáutica) – art. 142 da Constituição Republicana –, ou fazem parte das forças auxiliares (Polícia Militar ou Corpo de Bombeiros) – art. 42 "caput" da CR –. Logo, por conseguinte, temos uma Justiça Militar Federal e uma Justiça Militar Estadual.

3.3 Da Justiça Militar da União

À Justiça Militar compete julgar os crimes militares definidos em lei (art. 124 da CR/88), bem como aqueles dispostos em lei específica (parágrafo único, art. 124 da CR/88), inclusas as infrações disciplinares dos militares estáveis das forças armadas. É composta pelo Superior Tribunal Militar e pelos Tribunais e Juizes-Auditores militares instituídos por lei (art. 122, CR), logo, são órgãos da Justiça Militar da União. Os crimes de menos potencial ofensivo não se aplicam à Justiça Militar, determinação expressa da lei 9.839/99, o militar que pratica o crime de abuso de autoridade (lei n.º 4898/65), cuja previsão não se encontra na legislação castrense, ainda que praticado por militar do estado de São Paulo, será cabível a aplicação de institutos contidos na lei 9.099/95.

A Justiça Militar Federal ou da União possui como órgão julgador de segunda instância o Superior Tribunal Militar. Em primeira instância funcionam os Conselhos de Justiça federal, com sede nas auditorias militares de justiça. Ela é organizada pela lei n. 8.457/92, dispondo sobre sua estrutura, refere-se ao Superior Tribunal Militar, a Auditoria de Correição, os Conselhos de Justiça, os Juizes-Auditores e os Juizes-Auditores Substitutos e, quanto à área de atuação, dividiu o território nacional em 12 Circunscrições Judiciárias Militares.

O Conselho de Justiça, tanto o federal como o estadual, é composto por um Juiz- Auditor (toga) e quatro Oficiais (sabres) que, em conjunto, são responsáveis pelo andamento dos trabalhos e processos que conta ainda com serviços auxiliares da justiça militar (assemelhados). A este "fórum" especial dá-se o nome de Auditoria Militar. Um conselho de justiça subdivide-se em conselho especial de justiça e conselho permanente de justiça.

Por conseguinte, o Conselho Especial de Justiça, segundo o art. 16, a, da lei n. 8.457/92 é composto da seguinte maneira: pelo Juiz-Auditor e por 4 (quatro) juízes militares, sob a presidência de um oficial-general ou oficial superior, cujo posto nunca será inferior ao do acusado. É destinado a processar e julgar oficiais subalternos (1º e 2º tenente), oficiais intermediários (capitão-tenente e capitão) e oficiais superiores (Capitão-de-Mar-e-Guerra, Capitão-de-Fragata, Capitão-de-Corveta; Coronel, Tenente-Coronel e Major), lembrando que os oficiais-generais são processados e julgados pelo Superior Tribunal Militar (art. 40, IX, a, da Lei Orgânica da Justiça Militar). É chamado de especial porque se formará para cada processo, sendo dissolvido em seguida do término dos trabalhos. Assim, "os juízes militares que integrarem os Conselhos Especiais serão de posto superior ao do acusado, ou do mesmo posto e de maior antigüidade" (art. 23 da lei n. 8457/92).

O Conselho Permanente de Justiça instala-se pelo período de três meses consecutivos para processar e julgar as praças, ou seja, militares que não se enquadram em nenhum dos círculos de oficiais. É composto de um auditor e de três oficiais até o posto de capitão ou capitão-tenente (Círculo de Oficiais Intermediários).

Recebida a denúncia, o Juiz-Auditor militar providencia a instalação do conselho de justiça, sorteando, conforme o caso, a convocação do conselho especial de justiça ou o conselho permanente de justiça (art. 399, a, do Código de Processo Penal Militar). O Conselho Especial e o Permanente de Justiça funcionam, obrigatoriamente, com a presença de um auditor militar, sob pena de nulidade dos atos. Atuam na sede das Auditorias, exceto em casos de relevante motivo social impeditivo, mediante deliberação do Superior Tribunal Militar.

Na esfera federal, o conselho justiça é presidido pelo oficial general ou oficial superior da mais alta patente (art. 16, a, da lei n. 8457/92). Por outro lado, no âmbito dos estados em que esteja organizada a justiça militar, a presidência do conselho de justiça é exercida por um juiz de direito (art. 125, parágrafo 5º, da CR/88).

Existem, ainda, os Conselhos de Justificação da União (Lei n.º5836/72), destinados aos oficiais acusados de indignidade com o oficialato, e o Conselho de Disciplina (Decreto 71.500/72), que destinam-se a julgar a incapacidade das praças especiais e comuns, com estabilidade assegurada, a permanecer em situação de atividade nas formas armadas, assegurado o direito de defesa.

Não são objeto de estudo da presente pesquisa, porém, cabe ressaltar, não se confundem com os conselhos de justiça, estudados anteriormente.

3.4. Da Justiça Militar do Estado de São Paulo e a atividade policial

O Decreto n. 88.777 (R-200), de 30 de setembro de 1973, regulamenta a atividade da polícia militar e do corpo de bombeiros no estado de São Paulo. Este regulamento estabelece princípios e normas inerentes à atividade militar no âmbito estadual. É salutar, nesse momento, diferenciar a transgressão disciplinar de crime militar.

Em linhas gerais, as infrações disciplinares estão previstas nos regulamentos disciplinares, enquanto que os crimes militares encontram morada no Código Penal Militar. A organização das Justiças Militares dos estados sofreram sensíveis alterações com a chamada "Reforma do Judiciário", perpetrada pela Emenda Constitucional n. 45 de 2004. A iniciativa para propor sua criação, no âmbito das unidades federativas, foi concedida ao Tribunal de Justiça, cujo estado possua um efetivo militar superior a 20.000 (vinte mil) integrantes.

Coube à organização judiciária dos estados decidir sobre a criação, ou não, da Justiça Militar, cuja morada encontra assento constitucional no art. 125, §§ 3º, 4º e 5º. É constituída, em primeira instância, pelos Juizes de Direito e pelos Conselhos de Justiça. Em segundo grau, é composta pelo próprio Tribunal de Justiça ou pelo Tribunal de Justiça Militar estadual, caso possua o respectivo estado membro (§ 3º, art. 125). Antes da Emenda n. 45/04, a justiça militar estadual de primeiro grau era constituída apenas pelos Conselhos de Justiça.

A Justiça Militar do Estado de São Paulo é organizada nos termos da lei n. 5.048 de 22 de dezembro de 1958. Possui quatro Auditorias, cada uma com duas categorias de Conselho de Justiça: i) especial: para julgamento de oficiais; ii) permanente: para julgamento de inferiores e praças.

Todas as Auditorias Militares possuem sede na capital. Portanto, policiais militares do interior se deslocam para responder eventuais processos militares, criando um inconveniente logístico para o Estado transportar seus indiciados militares e, consequentemente, uma demora nas decisões em razão do número ínfimo de funcionários, em face da demanda de processos.

Os Tribunais de Justiça Militar do Estado de São Paulo são compostos por cinco juízes, sendo dois civis e três militares, cujo posto ocupado é o de Coronel da polícia militar, possuindo jurisdição para decidir sobre recursos oriundos das Auditorias Militares, perda de patente e declaração de indignidade para o oficialato dos integrantes da Policia Militar.

Em se tratando de competência, o art. 125, § 4º da CR, inovou o conteúdo da matéria, in verbis estabelecendo, no § 4º que:

(...) compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças" (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 45, de 2004).

Em outras palavras, extraiu-se a premissa de que nenhum civil será julgado, em hipótese alguma, pelo juízo militar estadual. Para confirmar tal premissa, invocamos o art. 125, parágrafo 4º da CR/88 corroborado em decisão de hábeas corpus proferida em Minas Gerais (HC 80.163/MG, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI - grifei).

Disso decorre fato curioso que merece destaque, ainda que meramente citatório, é o caso do instituto jurídico chamado <>, previsto no Título V, crimes contra o patrimônio, do código penal militar: Art. 241. Se a coisa é subtraída para o fim de uso momentâneo e, a seguir, vem a ser imediatamente restituída ou reposta no lugar onde se achava: Pena - detenção, até seis meses. Parágrafo único. A pena é aumentada de metade, se a coisa usada é veículo motorizado; e de um terço, se é animal de sela ou de tiro.

O furto de uso está capitulado na legislação castrense, porém não está previsto na legislação penal comum, interpretando o fato à luz do preceito constitucional anteriormente mencionado, ressalta a inaplicabilidade da justiça militar para com o civil. Logo, por via de conseqüência, o civil que venha a furtar uma viatura militar para devolvê-la em seguida, configurada a intenção de uso momentâneo, cometeria, em tese, fato atípico.


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4 A COMPETÊNCIA PARA JULGAR MILITAR ACUSADO DE ABUSO DE AUTORIDADE

Há muitos anos discute-se nos tribunais superiores sobre a competência, e até mesmo a natureza jurídica, do crime de abuso de autoridade cometido por policial militar no exercício da função. Aplica-se, neste caso, a regra básica de competência do art. 69 et. seq. do Código de Processo Penal, são elas: o lugar da infração, o domicílio do réu, a natureza da infração, a distribuição, a conexão ou continência, a prevenção e a prerrogativa de função.

No mais, seja militar estadual ou federal, a competência para processo e julgamento é a da justiça comum e não da castrense. Tal afirmação é corroborada por entendimento sumulado pelo E. Superior Tribunal de Justiça, que diz:

"compete à Justiça Comum processar e julgar militar por crime de abuso de autoridade, ainda que praticado em serviço", e não para por aí: "Policiais militares denunciados perante a Justiça Comum e Militar. Imputações distintas. Competência da primeira para o processo e julgamento do crime de abuso de autoridade, não previsto no Código Penal Militar, e da segunda para o de lesões corporais, porquanto os mesmos se encontravam em serviço de policiamento. Unidade de processo e julgamento excluída pela incidência do art. 79, I, do CPP" (STJ – RT, 663/347).

Portanto, pode-se constatar o entendimento jurisprudencial de que compete à justiça comum o julgamento de militar que comete crime de abuso de autoridade contra civil. O principal fundamento é de que não há previsão de tal crime na legislação penal castrense (Código Penal Militar), além do mais é o que dispõe a lei que regula o processo de responsabilização dos crimes de abuso de autoridade.

Por isso, essa é uma doutrina que tem se espalhado pelos tribunais brasileiros, a conferir: o abuso de autoridade – competência – crime praticado por policiais militares no exercício de função administrativa civil (Lei n.º 4.898, de 9-12-65, arts. 3º, 4º e 6º). Tratando-se de delito previsto apenas na lei penal comum e não na militar, a competência para o processo e julgamento é da justiça comum. Precedentes do Supremo Tribunal Federal." (STF – RHC 63.145-2-MG – Rel. Min. Sidney Sanches – DJU, 16 ago. 1985, p. 13.257 – SIP 2/86).

"Firmou-se a jurisprudência do STF e do TRF no sentido de que compete à Justiça Ordinária Estadual conhecer e julgar os crimes de abuso de autoridade, mesmo quando praticados por policiais militares, no exercício de função administrativa civil". (C.Comp. 7.303-MG – 1ª Seção TFR – Rel. Min. Costa Lima – j. 25-3-87 – DJU, 21 maio1987, p. 9.580 – SIP 6/87).

"Processo penal – Competência – Policial Militar – Crime de abuso de autoridade – Lei n.º 4.898/65 – Art. 4º, a – 1. Não previsto o crime no Código Penal Militar, mas na legislação comum, e embora praticado por policial militar, no exercício da função policial civil, a competência é da Justiça Estadual e não da Justiça Militar".


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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A organização da Justiça Militar brasileira é de complexidade ímpar, no tocante à matéria de competência. Os legisladores não tratam com uniformidade de assuntos inerentes à Justiça Militar (federal e estadual), gerando um cenário de maior desordem.

No dia 1 de abril de 2008, a Justiça Militar brasileira fez 200 anos de instalação no Brasil, originariamente chamado de Conselho Supremo Militar e de Justiça. Possui, além de inúmeros desafios estruturais, um sistema de organização ímpar, frente aos outros países que a possui, segundo nos dá noticia o eminente Promotor de Justiça Militar Jorge César de Assis (2008), pois ela é gênero que apresenta duas espécies: a Justiça Militar da União e a Justiça Militar Estadual.

A Justiça Militar, em razão da pessoa, deveria ser a responsável para julgar o militar incurso desse crime, pela razão jurídica de se manter uma justiça castrense forte, além de preservar práticas típicas e costumes típicos da caserna, inerentes à função de militar, em homenagem ao princípio constitucional militar da hierarquia e disciplina (art. 142, CR/88). Certamente, o pequeno contingente alocado na Justiça Militar, aliado ao descompasso legislativo, fizeram com que os tribunais ditassem esse entendimento dominante.

O militar que pratica um crime, seja qual for e contra quem o fizer, deve ser submetido à Justiça Castrense, pois esta é mais rigorosa quanto à previsão e aplicação da lei penal militar, ressalvado os casos em que o militar comete crime doloso contra a vida humana, competência constitucional intocável do Júri Popular.

Portanto, até que se legisle disposições em contrário, o que não é uma eventualidade do Poder Legislativo tipicamente positivista, o militar que pratica crime de abuso de autoridade contra um civil, no exercício da função, será submetido à Justiça Comum para ser processado e condenado, observadas as ressalvas e especificidades da complexa legislação militar brasileira.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, J. C. de. A Justiça Militar Brasileira. Jus Militaris. Rio Grande do Sul. Disponível em: http://jusmilitaris.com.br. Acesso em: 01 set. 2008.

BARROSO FILHO, J. Justiça Militar da União. Jus Navigandi. Teresina: v. 3, n. 31, 1999.

CARVALHO, A. R. de. A tutela jurídica da hierarquia e da disciplina militar: aspectos relevantes. Jus Navigandi. Teresina: v. 9, n. 806, 2005. Disponível em: . Acesso em: 24 jun. 2008, p.60-61.

CAPEZ, F. Curso de Processo Penal. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 186.

_______________. Curso de Processo Penal. 11ª edição revista e atualizada. Ed. Saraiva, São Paulo, 1998, p.188.

NETO, J. da S. L. Processo Penal Militar. 5ª edição. São Paulo: Editora Atlas, 2000, p.104.

ROSA, P. T. R. Conceito e Alcance do Conselho de Justificação. Disponível em: www.portalmilitar.com.br. Acesso em: 2008.

Regulamento Disciplinar para a Polícia Militar e Corpo de Bombeiros do Estado de São Paulo, Decreto n. 88.777/83.


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Sobre o texto:
Texto inserido no Jus Navigandi nº1928 (11.10.2008)
Elaborado em 08.2008.

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Informações bibliográficas:
Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
NUNES, Julio Cesar da Silva. A competência da Justiça Militar brasileira e o abuso de autoridade praticado por militar . Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1928, 11 out. 2008. Disponível em: . Acesso em: 23 out. 2008.

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