Robinson Fernandes - Delegado de Polícia do Estado de São Paulo. Professor universitário de Direito. Aprovado no exame da Ordem dos Advogados do Brasil.
Ao tratarmos do direito militar, grandes questões vem à baila tais como a conduta militar, os deveres, as sanções militares e, sobretudo o direito penal militar.
Sem embargo à importância dos tópicos mencionados, cremos de suma relevância o entendimento do vínculo institucional que o militar mantém com o Estado, pois aí está o fundamento de validade da própria existência militar, dependendo dela, de certa forma, todas as demais questões.
Nesse diapasão, cremos de elevado valor a análise e compreensão do vínculo institucional que o oficial militar possui com o Estado haja vista se tratar da carreira de comando das respectivas instituições.
O oficial militar, assim como as demais carreiras públicas, após ingresso mediante concurso público e aprovação em academia militar, implementados todos os requisitos constitucionais e legais, passa a gozar de vinculação com o Estado, melhor dizendo, com qualquer dos entes políticos passíveis de possuir a carreira em seus quadros, quais sejam, os Estados-membros da federação e a União.
Nessa esteira, estará o oficial militar regido, assim como os demais servidores, por um regime jurídico.
Importa brevemente compreendermos o alcance e profundidade do que seria tal regime jurídico.
O regime jurídico dos servidores abrange, em síntese, toda disciplina jurídica da atividade estatal desempenhada pela figura do servidor e da relação jurídica deste com o Estado, tais como acessibilidade ao cargo, direitos, deveres, garantias, penalidades, remuneração, vinculação, estabilidade e tudo o mais relacionado, já que o ente político não celebra contrato com o servidor, ao revés, lhe impõe às normas unilateralmente (FERNANDES, 2004: 1,2).
Nas palavras do Ministro Celso de Mello do Supremo Tribunal Federal quando relator em ação direta de inconstitucionalidade de número 766/RS:
“A locução constitucional ‘regime jurídico dos servidores públicos’ corresponde ao conjunto de normas que disciplinam os diversos aspectos das relações, estatutárias ou contratuais, mantidas pelo Estado com os seus agentes”.
Complementando, adverte o ilustre professor Eurico Marcos Diniz de Santi (2000: 95):
“Reitere-se, regime jurídico não é conjunto de normas (em sentido estrito), mas conjunto de princípios jurídicos informadores de um conglomerado normativo”.
No tocante especificamente a vinculação dos oficiais militares, sejam das forças armadas ou das polícias militares dos Estados-membros da federação, temos que após devidamente investido no posto, recebida a patente e titulação respectiva na hierarquia que vier a ocupar no oficialato, passarão a possuir direitos provenientes dessa vinculação com o ente estatal.
Tal vinculação ora se assemelha a estabilidade dos demais servidores públicos civis, ora se assemelha a vitaliciedade dos magistrados, membros dos ministérios públicos e tribunais de contas.
A estabilidade é decorrente do vínculo jurídico que o servidor adquire após ingresso em concurso público de títulos ou títulos e provas para provimento efetivo e o exercício de no mínimo três anos.
Uma vez adquirida o servidor só perderá o cargo em virtude de sentença judicial transitada em julgado ou após decisão em processo administrativo assegurada ampla defesa, e ainda o não regulamentado procedimento de avaliação periódica de desempenho também assegurada ampla defesa, nos termos do artigo 41 da Constituição Federal.
Já a vitaliciedade é decorrente do vínculo jurídico que taxativamente determinados agentes adquirem, sendo eles, magistrados, membros dos ministérios públicos e ministros dos tribunais de contas, onde, no caso dos magistrados e membros do ministério público da primeira instância, se dará após dois anos de exercício, nos demais casos, da simples investidura, donde o vitalício só perderá o cargo por sentença judicial transitada em julgado nos exatos termos dos artigos 73, parágrafo 3º; 75; 95, inciso I e 128, parágrafo 5º, inciso I, alínea “a” da Carta da República.
Ocorre que nossa Lex Legum, sem maior detalhamento expresso sobre a forma de vinculação, isto é, se estáveis ou vitalícios, prevê para os oficiais militares a perda do posto e da patente se for julgado indigno do oficialato ou com ele incompatível, por decisão de tribunal militar de caráter permanente, em tempo de paz, ou de tribunal especial, em tempo de guerra, consoante dispõe o artigo 142, parágrafo 3º, inciso VI, estatuindo ainda que se apliquem tais disposições também aos oficiais das polícias militares e corpo de bombeiro, militares dos Estados-membros por simetria constitucional e expressa previsão do artigo 42, parágrafo 1º.
Diante do exposto, surge então o questionamento sobre qual forma de vinculação jurídica os oficiais militares, das forças armadas, das polícias militares ou corpos de bombeiros militares, estariam sujeitos, uma vez que a Constituição Federal além de não estatuir expressamente deixa dúvidas ao mencionar, sic, que só perderão o posto e a patente por decisão de tribunal militar, assemelhando-se a previsão destinada aos magistrados, membros dos ministérios públicos e dos tribunais de contas.
Apreciando a vexata quaestio, a doutrina se debruça sobre os mais variados argumentos, surgindo defensores de ambas as teses, isto é, de que os oficiais militares seriam vitalícios ou apenas gozariam da estabilidade.
Para o ilustre professor Diógenes Gasparini (2002: 227), os oficiais militares gozam da vitaliciedade.
Segundo o renomado administrativista, citando os dispositivos constitucionais correlatos e, apoiado nos ensinamentos de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, os oficiais são vitalícios, ao perderem o posto e a patente apenas por decisão de tribunal militar permanente em tempo de paz ou tribunal especial em tempo de guerra, redação que muito se assemelha do disposto para os magistrados, membros dos ministérios públicos e dos tribunais de contas, quanto à exigência de participação de um tribunal não obstante difiram no aspecto sentença e decisão.
Por força de tais princípios, poder-se-ia afirmar que ocupariam um posto vitalício.
Complementando o tema e diferenciando da estabilidade de que gozam todos os demais servidores, esclarece que a estabilidade e a efetividade não se confundem com a vitaliciedade, pois esta seria predicamento não outorgado aos servidores públicos, seria, isto sim, a alguns agentes públicos que as recebem em razão da absoluta necessidade para o desempenho de suas atribuições, os quais só perderiam o cargo por sentença transitada em julgado diferentemente dos demais servidores que são estáveis, aos quais se possibilita a perda do cargo por decisão em processo administrativo, dentre outras hipóteses (ob. cit. p. 194).
O saudoso administrativista Hely Lopes Meirelles preleciona que a única forma de demissão dos vitalícios, diferentemente dos estáveis, é a sentença judicial, seja procedente de processo penal como efeito da condenação, seja proveniente de processo judicial instaurado para a finalidade demissão.
De qualquer sorte, por emanar de processo judicial, requer-se maior formalismo e rigor quanto ao contraditório e ao exercício da ampla defesa com os recursos judiciais inerentes, diferentemente da demissão pela via administrativa dos estáveis que, embora amparada pela ampla defesa, é sem dúvida, de menor rigor formal não admitindo recursos judiciais, senão ações perante o Estado-juiz para invalidação do ato administrativo.
Assevera ainda ser numerus clausus a categoria de tais agentes públicos à luz do texto constitucional, donde se inserem apenas os magistrados, membros do ministério público e tribunal de contas (MEIRELLES, 1991: 386).
Abordando a questão em tela, com muita propriedade, a professora Odete Medauar entende que a vitaliciedade reveste de maior força o direito à permanência no cargo uma vez que a perda só ocorrerá mediante sentença judicial transitada em julgado.
Nessa perspectiva, esclarece que a Carta Política apenas garante a vitaliciedade aos magistrados (artigo 95, inciso I), aos membros do Ministério Público (artigo 128, parágrafo 5º, inciso I, “a” e aos membros dos Tribunais de Contas (artigos 73, parágrafo 3º, e 75), dependendo o vitaliciamento para os magistrados e membros do Ministério Público de primeira instância do efetivo exercício de dois anos (MEDAUAR, 2006: 276,277).
Na mesma linha de entendimento caminham os ilustres administrativistas Celso Antônio Bandeira de Mello (2006: 282) e Maria Sylvia Zanella di Pietro (2005: 528).
Para Alexandre de Moraes (2005: 1672) os oficiais militares não gozam da vitaliciedade por ausência de expressa previsão constitucional já que a única similitude quanto aos ditames constitucionais para os verdadeiramente vitalícios seria a palavra ‘tribunal’. Para os oficiais militares se requer mera decisão enquanto para os verdadeiramente vitalícios, sentença judicial transitada em julgado. Ademais, por se tratar de decisão administrativa, remanesce a estabilidade de que gozam todos os demais servidores.
Com efeito, na direção de tal posicionamento vem caminhando reiteradamente o Supremo Tribunal Federal haja vista a impossibilidade de recurso extraordinário ser interposto em face dessa modalidade de decisão do tribunal militar por se entender ser de natureza meramente administrativa não se revestindo de caráter jurisdicional como, in casu, ocorre com os vitalícios. Assim já se pronunciou o Pretório Excelso no Agravo de Instrumento nº 252.391-3/AC, como destacou o Ministro Celso de Mello, in verbis:
“Sendo assim, ainda que judiciária a autoridade de que emanou o pronunciamento impugnado, não terá pertinência o recurso extraordinário, se a decisão houver sido proferida em sede estritamente administrativa, como ocorre, por exemplo, com os atos judiciais praticados em procedimentos destinado a viabilizar a decretação da perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças, por razão de indignidade ou de incompatibilidade de seu comportamento com o exercício da função militar ou com o desempenho da atividade policial militar.” (Precedentes: RTJ 94/1188 – RTJ 102/440 – RTJ 127/669).
Em face do posicionamento predominante na atual formação da Suprema Corte, dúvidas ainda podem pairar no que tange a inviabilização de recurso extraordinário, quando a decisão afrontar texto constitucional, por si só justificar a inexistência de vitaliciedade para os oficiais militares.
Vejamos, a impugnação da patente dos oficiais militares, assim como a graduação das praças é regida por estatutos próprios e não encontra guarida quanto à vitaliciedade, formal ou material, na Lei Maior. Há apenas e tão somente previsão quanto ao órgão donde se emanará tal decisão.
Demais disso, é sabido que as autoridades judiciárias prolatam decisões de caráter meramente administrativo em decorrência das funções anômalas ou atípicas de cada um dos Poderes em verdadeiro sistema de controle e equilíbrio entre estes, o denominado sistema de freios e contrapesos, checks and balances. Além disso, a decisão não é uma sentença ou acórdão, é apenas um ato administrativo, não possibilitando a interposição de recurso extraordinário nos termos da norma processual e da Constituição Federal.
Por fim, anote-se, a previsão constitucional dos parágrafos 4º e 5º do artigo 125 deve ser interpretada sistematicamente com os demais dispositivos pertinentes de tal sorte que as praças militares estaduais não estão igualadas aos oficiais militares, tampouco gozam de prerrogativas que as praças federais não possuam. Nessa esteira, o tribunal militar estadual apenas decidirá sobre a perda da graduação das praças quando caracterizar efeitos decorrentes de condenação criminal.
Portanto, as praças são passíveis de sofrer demissão por processo administrativo disciplinar no âmbito da administração, por inteligência dos mencionados dispositivos constitucionais, ao teor da Súmula 673 do Supremo Tribunal Federal.
Ante o todo exposto, passamos a concluir.
Em que pese argumentos em sentido favorável quanto à vitaliciedade dos oficiais militares, não nos parece apenas uma questão de semelhança da redação textual a nível constitucional.
Preliminarmente, o constituinte originário não previu a vitaliciedade de forma expressa aos oficiais militares, como fez com os magistrados, membros do ministério público e dos tribunais de contas, o que por si só já bastaria para acreditarmos não ser este o espírito do legislador e a vontade constitucional.
Malgrado a mera semelhança quanto à exigência de participação dos tribunais para a demissão do cargo, tal proceder não iguala os oficiais militares aos vitalícios, até porque neste caso, exige-se sentença transitada em julgado, isto é, processo de natureza jurisdicional terminado donde não caiba mais recurso, e para aqueles, mera decisão do tribunal.
De sorte, a decisão do tribunal que decretar a perda da patente não suporta recurso extraordinário nos termos da lei, justamente por não se tratar de decisão jurisdicional a despeito de emanar de órgão judicial, caracterizando decisão administrativa mutatis mutandis caracterizam as decisões demissórias em processo administrativo disciplinar, emanando do órgão judicial verdadeiro ato administrativo no exercício de função atípica daquele Poder.
Deveras, tirante a interpretação constitucional literal, que per si já afasta a vitaliciedade dos oficiais militares, ainda sob a exegese constitucional sistemática, depreende-se, analisando os dispositivos da Carta Magna num conjunto, que o oficialato não goza da vitaliciedade.
Com efeito, o constituinte originário estabeleceu apenas a previsão da perda da patente dos oficiais militares por tribunal militar, designando o órgão donde emanará a decisão.
Ademais, todos os agentes públicos que gozam da vitaliciedade como predicamento constitucional, também receberam outras garantias do Poder Constituinte para o exercício do respectivo mister, tais como a inamovibilidade, a autonomia funcional, o que os oficiais certamente não possuem.
Destarte, em que pese entendimentos em sentido contrário, tanto pelo viés da interpretação literal quanto pela interpretação sistemática da Constituição Federal, haja vista a natureza meramente administrativa da decisão do tribunal militar que decretar a perda da patente, podemos concluir que os oficiais militares gozam apenas da estabilidade no serviço público.
REFERÊNCIAS
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 18 ed. São Paulo: Atlas, 2005.
FERNANDES, Robinson. Do Estatuto Policial Paulista à Luz das Normas Constitucionais Aplicáveis. Monografia. São Bernardo do Campo: FDSBC, 2004.
GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
MEDAUAR, Odete de. Direito Administrativo Moderno. 10 ed. rev. e atual. São Paulo: RT, 2006.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 16 ed. rev. e atual. 2ª. tiragem. São Paulo: RT, 1991.
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. São Paulo: Atlas, 2005.
SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Lançamento Tributário. São Paulo: Max Limonad, 2000.
fonte:
http://www.academiadedireitomilitar.com/index.php?option=com_content&view=article&id=85&catid=35
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